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ago 12, 2017

Vidas Secas e a importância do domínio do discurso

“Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.”

 

O romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, integrante da lista de leitura obrigatória do vestibular da Fuvest, insere-se na chamada geração de 30, a segunda fase do Modernismo brasileiro. O livro apresenta uma família de retirantes nordestinos que vive em condição de miséria. O regionalismo e a crítica social dão o tom da obra, traços também característicos da geração a que pertence.

Entretanto, há no livro um tema merecedor de destaque, mas pouco abordado nas salas de aula: a importância da linguagem como construtora da existência dos indivíduos.

O professor britânico Nick Couldry, em sua obra “Por que a voz importa?”, aponta a desigualdade na possibilidade da fala como um grave problema das democracias. Para o professor, se não podemos expressar o que pensamos, o que sentimos e o que queremos, nossa existência passa a ser limitada ao que os outros dizem de nós. Nesse sentido, grupos sociais historicamente silenciados, como povos indígenas, prostitutas, travestis e transexuais, por exemplo, estão fora do jogo democrático porque não são ouvidos e passam, assim, à inexistência. Sua dor não é sentida porque, numa sociedade em que tudo é mídia e imagem, não aparecem.

Ora, Fabiano, vaqueiro esposo de Sinhá Vitória e pai de dois meninos, possui parco domínio vocabular. Balbucia algumas poucas palavras e dificilmente expressa verbalmente e com clareza o pensamento. No livro, em mais de um momento esse baixo domínio linguístico se mostra problemático. Diante do Soldado Amarelo, acaba preso e violentado; pelo patrão, é explorado. Ou seja, ao não conseguir verbalizar suas inquietações, ao não conseguir expressar verbalmente as opressões a que está sujeito, é constantemente subjugado.

Para Michel Foucault, filósofo francês, os detentores do discurso detêm a invenção da realidade. Como Fabiano não se expressa, tudo sobre si não é de fato seu. Pensa-se alguém inferior porque assim é visto pelos outros. Nesse sentido, Vidas Secas é mais que um livro sobre as condições objetivas e concretas da miséria, mas sobre as consequências de uma vida miserável sobre a construção psicológica das pessoas. O miserável não é apenas aquele que carece de comida e de dinheiro, é também aquele colocado distante da possibilidade de pensar a si mesmo de forma humanizada – daí um narrador em terceira pessoa a fazer largo uso do discurso indireto livre, como suporte para o baixo domínio vocabular das personagens.

No livro, a seca coloca as personagens num ambiente hostil e que se estende a diversos campos: a secura do espaço, das relações humanas e da linguagem. Esta última surge como tema de relevância fundamental e que ecoa em questões diversas, ainda hoje, como os moradores de rua e demais marginalizados de uma sociedade pautada pela urgência da imagem.

Os Retirantes – Candido Portinari – 1944

 

Autor: Professor Victor Valente

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